Vale a pena refletir um tanto sobre duas frases do estadista e jornalista francês Georges Clemenceau (1841-1929): (1) “O homem absurdo é aquele que nunca muda”; (2) “a guerra é uma coisa grave demais para ser confiada aos militares”. Vale igualmente, a título de exercício, deslocar a primeira frase para uma questão identitária qualquer, pessoal ou coletiva, como a identidade profissional do jornalista. Quanto à segunda, é oportuno especular sobre a possibilidade de que aquilo que se vem chamando de comunicação, ou seja, o grande vetor simbólico do turbocapitalismo, tenha magnitude maior do que a prática tradicionalmente confiada aos jornalistas.
De fato, parece-nos um absurdo cognitivo enfiar a cabeça na areia, como no atributo mítico do avestruz, em face da realidade atual das mudanças do jornalismo e da própria mídia dita “de massa”. Por outro lado, essa realidade é grande demais para ser instrumentalmente apropriada – e compreendida – por uma única e específica categoria profissional.
Na segunda metade do século 19, o jornalismo foi fundamental para o aperfeiçoamento das condições liberais de discussão e persuasão, abrindo caminho para a democracia das opiniões num espaço público consentâneo com a Revolução Industrial e com o liberalismo político e econômico. O jornal era uma entidade republicana. Dentro deste escopo, seria até possível conceber o jornalismo como um projeto político maior do que o “jornal” em si mesmo. Já em 1920, o educador e filósofo pragmatista John Dewey dizia que o jornalismo deveria ir além do mero relato objetivo de acontecimentos (o modelo em que a imprensa “reporta” e o leitor consome) para se tornar um meio de educação e debate públicos. Favorecendo o diálogo mais direto entre cidadãos e jornalistas, a atividade jornalística, mais do que “reportar”, teria em seu âmago a promoção da “conversa” pública, incrementando os dogmas da “soberania do povo”.
Na segunda metade do século 20, os mass media (imprensa, rádio e televisão) buscaram a estandardização de bens e de opiniões, ampliando tecnicamente o espaço público. Este tinha sido simultaneamente político e cultural. Com os desdobramentos tecnológicos da mídia massiva, deu-se um alargamento da esfera pública, mas apenas em suas dimensões materiais ou funcionais, sem real correspondência histórica com o que antes significavam política e cultura para a consolidação da república burguesa. O funcionamento do que se chamou “indústria cultural” não exigia mais do que a eficácia dos fluxos informacionais e a mobilização da atenção pública pela retórica diversificada do entretenimento. Os grandes críticos da cultura, Adorno à frente, sustentavam que essa realidade prática prescindiria de maiores horizontes intelectuais.
Consequências danosas
Agora, não se trata de uma coisa nem de outra: a mídia eletrônica (internet e suas derivações), biombo ideológico do capitalismo financeiro, institui-se em arquivo mundial do saber, com foco cultural na sincronização dos afetos em escala global. A palavra de ordem é velocidade, e não espírito republicano. Desde a década final do século passado, a tecnologia digital passou a impulsionar e consolidar a fragmentação dos públicos da mídia anterior sob as formas de individualidades comunicantes ou interativas. A antiga interação, regida pelo modelo de uma “massa” anônima e heterogênea, dá lugar à interatividade, que implica um processo gradativo de apropriação da tecnologia da comunicação pelos usuários. O fundo coletivista do modelo de massa anônima transforma-se no de um individualismo de massa. O que conta aqui não é a opinião argumentada, mas a opinião emocional ou afetual.
Aos desavisados, isto bem que poderia parecer apenas mais uma construção teórica para dar conta das novas relações sociais que espelham a lógica ou a ideoestrutura visível e consciente do mercado de bens e serviços. Elas sempre estiveram implícitas na dimensão industrial do jornalismo, mas ganharam um vulto ampliado no âmbito da financeirização e da tecnologização do mundo.
E o fato é que hoje tais relações constituem-se como objeto prioritário dos estudos de mídia, especialmente nos Estados Unidos, conforme especificou o professor Ronald Yates, da Universidade de Illinois, ao justificar a substituição de meras communications por media na designação do seu college: ”O que nós realmente fazemos é estudar e ensinar ‘comunicação midiatizada’ [mediated communications] (…). Nós estudamos e ensinamos mídia – mídia velha, mídia nova, mídia emergente, mídia futura. Em resumo, o College of Communications é sobre mídia. O mais importante de tudo isso (…) não é encontrar uma nomenclatura precisa, mas dar conta das mudanças que estão ocorrendo (…) Essas mudanças nas formas de distribuição [de informação e entretenimento] e na maneira como as pessoas pensam a respeito da mídia provocaram mudanças no escopo das comunicações como disciplina.” (LIMA, Venício A. “História, fronteiras conceituais e diferenças”. In: Observatório da Imprensa, nº 749, 4/6/2013).
No campo da formação profissional universitária, noticiou-se no final de 2010 que “a Universidade do Colorado estuda fechar seu curso de graduação em Jornalismo para criar um programa que combine preceitos jornalísticos e de ciência da computação”. O novo curso seria algo próximo de uma “graduação em mídias”. Segundo a mesma fonte, ao menos outras trinta escolas, entre elas Wisconsin, Cornell, Rutgers e Berkeley, consideram modificar os cursos para que se adequem às novas tendências do mercado de trabalho. O foco teórico e profissional é acomunicação midiatizada por ferramentas tecnológicas (mediated communications).
Assim, o jornalismo, foco bicentenário da liberdade de expressão consagrada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e ratificada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, tende a ser desconsiderado como um conteúdo democrático em benefício da ideia de um serviço ao consumidor, o que dá ensejo a algo como um jornalismo de dados.
Isto não equivale a dizer que tudo leva aos caminhos teóricos da comunicação, às ditas teorias da comunicação. Já Wilbur Schramm, um dos principais nomes do marketing acadêmico da comunicação (aliás, um esperto do auto-marketing…), após a Segunda Grande Guerra, chamou a atenção para o fato de que a Journalism Quaterly, a mais antiga revista acadêmica da área (fundada em 1924 com o nome de Journalism Bulletin), não publicou, durante os seus primeiros 21 anos, “um único artigo sobre teoria da comunicação”.
Mas equivale a dizer, sim, que a difusão do conceito de comunicação ligado ao jornalismo deve-se principalmente aos americanos, assim como lhes é devida a difusão de inovações técnicas neste setor para o resto do mundo. Ainda hoje, Calhoun, presidente do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais dos Estados Unidos desde 1999, vê na comunicação “o campo mais importante para o estudo de muitas dimensões-chave das mudanças sociais”, com uma notável diversidade de linhas de pesquisa, mas que “ainda não desenvolveu maneiras fortes o suficiente para integrar e se beneficiar dessa sua diversidade”.
A palavra “campo” não tem aí como referentes a produção e o consumo de jornalismo, e sim o espaço acadêmico de reflexão e constituição de um saber positivo sobre a comunicação. Apesar de sua importância social, o jornalismo é tão só uma parte desse campo, que recobre uma variedade de outras práticas, além dos problemas atinentes ao laço coesivo das sociedades humanas. Restringir-se ao jornalismo oitocentista – que permanece colado ao sistema de produção e distribuição de informações – é reduzir esse escopo teórico.
Em outras palavras, a questão corporativa vem toldando durante muito tempo o problema conceitual desse campo de conhecimento. E isto não é exclusivo da comunicação. Mais de um scholar estrangeiro da sociologia pôde observar que a excessiva concentração de esforços na formação profissional (com vistas à realização de pesquisas de opinião, surveys empresariais etc.) tem consequências danosas para a reflexão de longo alcance sobre o campo disciplinar, portanto, para a produção da própria sociologia enquanto forma histórica de intervenção intelectual na sociedade.
Gestão logotécnica
Reinterpretado como “território livre” da cidadania contemporânea, o consumo expande-se hoje no quadro confortável (sem conflitos, ao contrário do que costuma ocorrer no plano dos direitos reais ou daqueles ligados ao trabalho) da inserção dos indivíduos no mercado, neutralizando ou pasteurizando a dinâmica tensional inerente ao jogo democrático da cidadania ativa, portanto abrindo o caminho sociopolítico para a pasteurização do jornalismo. É bom lembrar que, ao redigirem a Constituição dos Estados Unidos, os fundadores daquela nação garantiram já na Primeira Emenda (Amendment I), os direitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa, ao lado de quatro outros, por reconhecerem a tensão comunitária da diferença entre sociedade e Estado. Tensão, aliás, que vem se exasperando nas ruas do Brasil desde junho passado, inclusive com o ensaio de meios próprios de comunicação.
Mas, além do economês, o que esperar de um paquiderme burocrático como o Ministério da Educação solto na solidão do planalto? Nem sequer os doutos do Supremo Tribunal Federal parecem ter entendido alguma coisa do fenômeno comunicacional. As recentes diretrizes curriculares do MEC que separam o jornalismo da Comunicação, isolando-o ao modo de uma ilha sem pontes, constituem um caso exemplar de contramão ao mesmo tempo cognitiva e profissional.
A metáfora geográfica comparece aqui para sugerir como oportuna a leitura de um famoso poema sobre um análogo de “ilha”, o Monte Lu, composto por Su Shi, tido como um dos poetas e ensaístas chineses mais influentes durante a Dinastia Song, no século 11. “Nós não conhecemos a verdadeira face do Monte Lu porque estamos todos dentro”, diz um dos versos.
O acidente geográfico metaforiza a especificidade dos locais em que acontecem os fatos históricos. O poema chinês pretende indicar que a mera descrição do Monte Lu é insuficiente para compreendê-lo, sendo imperioso abrir-se para os diferentes ângulos, para a aceitação de diferentes perspectivas. Mas principalmente abrir-se para uma exterioridade, de onde possam provir vozes críticas, não meramente descritivas. Pode-se ampliar a alusão até “regiões” do conhecimento cujos discursos sobre suas práticas específicas, por motivos de reprodução burocrática de sua história, não conseguem ultrapassar a autorreferência interna.
O jornalismo é um desses lugares. Historicamente autolegitimada pelo ideário liberal e hoje pelo discurso da competência técnica, a corporação jornalística – cada vez mais concentrada por estratégias empresariais e fechadas em modelos de negócios – dificilmente se abre para a crítica do “senso comum” profissional, daquilo que o francês Pierre Bourdieu chama de “enorme depósito de pré-construções naturalizadas, portanto, ignoradas como tal, que funcionam como instrumentos inconscientes de construção”.
A esse senso comum se pode aplicar a metáfora do Monte Lu. Assim, uma exterioridade,a exemplo de uma ciência social específica deste campo produtivo e cognitivo, revela-se inaceitável por parte de uma certa parte de jornalistas e outros entes, já que estes produzem um discurso supostamente consciente do sentido de suas práticas, mais adequado à gestão logotécnica daquilo que julgam ser o social. Não é jornalismo reinventado como micro-história do cotidiano, isto é, um jornalismo que reinvente analiticamente o amanhã em seu relato do ontem ou do instante. É uma produção apedêutica, apolítica – absurda, para se retomar o dito de Clemenceau.
E a questão, como a da guerra, é também grave.
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Muniz Sodré é jornalista, sociólogo, professor da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador da comunicação e do jornalismo e autor de Comunicação do grotesco (Vozes, 1973) e Monopólio da fala (Vozes, 1977)
Carta Capital

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