Cada vez mais sofisticadas, fábulas do cinema passam lições e miram também o público adulto
Por: Fellipe Torres – Diario de Pernambuco
Histórias protagonizadas por animais com características exclusivas dos seres humanos – como a capacidade de falar, refletir e apreender lições morais a partir de situações cotidianas – são recorrentes desde a Grécia Antiga. O surgimento das fábulas enquanto gênero narrativo é atribuído à imaginação fértil do escritor Esopo, nascido seis ou sete séculos antes de Cristo. Transmitidas para as gerações seguintes sobretudo por meio da tradição oral, os pequenos contos são o marco zero de uma tradição abraçada pela literatura infantojuvenil e, mais tarde, por outras manifestações artísticas, a exemplo do teatro e do cinema.

Na sétima arte, especificamente, cujas produções são com frequência repletas de bichos antropomórficos de toda espécie, há um nicho de mercado tão frutífero quanto exigente. Para agradar tanto o público infantojuvenil quanto os pais, os realizadores se desdobram no sentido de não deixar a inventividade se descolar de um ingrediente fundamental das fábulas – a existência de enredos edificantes e comoventes (veja exemplos na página). A mais nova criação de Hollywood para este filão, Zootopia – Essa cidade é o bicho, entrou em cartaz nos cinemas brasileiros, nesta semana, com grande expectativa. A confiança se deve, em parte, ao excelente desempenho em países onde já estreou, tanto nas críticas recebidas quanto nas bilheterias.
Passada em um ambiente onde os animais ocupam os papéis dos humanos, a animação acompanha a saga da coelha Judy Hopps (dublada pela atriz Mônica Iozzi), filha de agricultores cujo sonho é se mudar para a cidade grande e se tornar policial. Discriminada pelo porte físico diminuto, a princípio ela é designada para ser guarda de trânsito. Insatisfeita e determinada, consegue assumir a investigação do desaparecimento de vários mamíferos, embora a exigência por uma resolução em tempo recorde a coloque sob pressão. Vítima de manipulações, Judy recorre à malícia da raposa Nick Wilde (voz de Rodrigo Lombardi) para enfrentar o desafio.
Entre as possíveis mensagens positivas espalhadas pelo roteiro, estão o combate ao preconceito, o respeito às diferenças e o estímulo à perseguição dos sonhos e objetivos. Em uma análise mais minuciosa, talvez a saga da coelhinha Judy possa representar, ainda, o empoderamento da mulher – supostamente frágil e incapaz – diante de uma sociedade machista (no filme, os policiais são animais de grande porte). Como um esforço extra para cativar espectadores adultos, o longa-metragem tenta estabelecer um diálogo direto com eles ao salpicar referências a produções audiovisuais como O poderoso chefão (1972) e Breaking bad (2008-2013).
O sucesso do longa na bilheteria norte-americana – em duas semanas, rendeu mais de 140 milhões de dólares – é atribuído, entre outros fatores, à entressafra de animações voltadas para os espectadores mais jovens (a anterior, Kung fu Panda 3, estreou em 29 de janeiro). A escassez ocasional de títulos do gênero é percebida por realizadores locais, como foi o caso de Chaps de Melo, a mente por trás da animação pernambucana Bita e os animais, criada em 2013.
O desenho foi o primeiro produto audiovisual da hoje consagrada franquia Mundo Bita. Na avaliação do criador do personagem infantil, há pouca disponibilidade de produtos com cunho educativo e temáticas construtivas. Com um misto de contação de histórias e números musicais, a produção infantil se tornou fenômeno de alcance nacional, disponível em múltiplas plataformas.
Com alvo no mesmo nicho, a série pernambucana Além da lenda, em fase de produção, aborda personagens do folclore nacional. Quando concluída, será exibida no canal TV Brasil. Para o produtor do desenho animado, Ulisses Brandão, o país tem se destacado na criação de séries educativas, como Dora aventureira e Show da Luna, mas carece de uma tradição de longas de animação com perfil edificante, ao estilo das fábulas lançadas por Hollywood.
“Ainda não construímos uma linguagem própria, então as poucas produções existentes seguem o modelo dos estúdios de Hollywood, com determinadas estruturas narrativas e predominância do final feliz. Esses filmes, principalmente os da Disney, são competentes do ponto de vista de roteiro e de atração de público e, por isso, servem de exemplo para a gente. A preocupação de agradar tanto as crianças quanto os pais é um dos aspectos reproduzidos por nós”, comenta Brandão.

Rodrigo Carreiro. Foto: Juliana Leitao/DP
Rodrigo Carreiro. Foto: Juliana Leitao/DP
>>>>> Entrevista Rodrigo Carreiro  
pesquisador, doutor em comunicação e professor do curso de cinema da UFPE
Como enxerga a produção cinematográfica de animação infantil?
A animação é uma área do cinema muito pouco valorizada, embora nos últimos 20 anos tenha ocorrido uma significativa melhora da produção cinematográfica. Boa parte dos bons filmes dessa produção industrial, mais Hollywood, está justamente na animação. Isso acontece devido à fusão entre Pixar e Disney e também por conta da maior concorrência que passou a haver nesse campo. Se no passado a Disney mandava, passou a ter concorrentes de peso, e isso fez bem à animação, porque melhorou a qualidade, não só tecnicamente, mas do ponto de vista da narrativa.
Qual o papel das fábulas, nesse cenário?
Essa fórmula que foi criada e consolidada pela Disney, de animações com tom mais fabular, essa coisa da humanização de animais e objetos, tem sido usada por outros estúdios e gera impacto positivo especialmente no público mais jovem, inclusive no caráter formativo, pedagógico. É a porta de entrada do público no mundo da arte e da imagem em movimento. Tem dupla função, tanto de uma perspectiva narratológica, no sentido de ajudar a construir valores culturais, seja na perspectiva positiva ou negativa. Na tradição dos estudos culturais dos anos 1980 e parte dos 1990, dominava o entendimento de que a Disney passava valores capitalistas, ressaltava o individualismo… Mas esses filmes ensinam valores positivos, no sentido moral, qualidades como amizade, valores éticos, que até hoje continuam valendo.
Com a evolução, esses filmes passam a mirar também no público adulto. É um fator relevante?
Se você for olhar a história da animação mais comercial, vai ver que a Disney teve longo período de vacas magras que durou todos os anos 1970 e 1980. Na década de 1990, quando parte da crítica achava que a animação estava moribunda, assim como os filmes de western, um cadáver ambulante, a Disney se reinventou. Muito disso vem dessa aposta em uma animação que servia à criança, que tem a perspectiva infantil, mas também privilegia o olhar adulto. O Rei Leão, que é um grande marco para a renascença da animação, é uma variação de Rei Lear, de Shakespeare, conforme assumem os roteiristas. Há um propósito maior, de chamar o público adulto para ter prazer nessas animações. Lembro da minha infância, quando meus pais me acompanhavam no cinema para ver filme infantil e claramente não escondiam o quanto estavam entediados. Só estavam ali porque era preciso um adulto para acompanhar. Não era incomum encontrar meu pai dormindo.
Como isso mudou ao longo dos anos?
Tive a sorte de ter filhos no momento em que a animação está sendo feita com ótima qualidade e também olhando para os adultos. Estúdios como a Dreamworks costumam colocar nas animações referências a filmes anteriores, fazer um jogo lúdico para o cinéfilo se reconhecer nos filmes. Isso é uma coisa positiva, porque quando um pai vai com os filhos assistir a um filme, a produção funciona para os dois públicos. Ambos vão compartilhar uma experiência afetiva, ainda que com olhares distintos. A animação de hoje é boa justamente por causa disso, porque constrói a narrativa em dois níveis, um mais simples e outro mais sofisticado. Não à toa, o Festival de Veneza concedeu prêmio especial à Pixar por seus filmes. Essas produções está em um nível mais alto do que 90% da produção de Hollywood voltada para o público adulto, que deveria ter um nível maior de complexidade e não tem

Rei Leão foi um ponto de virada para as animações em Hollywood. Imagem: Disney/divulgação.
Rei Leão foi um ponto de virada para as animações em Hollywood. Imagem: Disney/divulgação.

 
>>>> Confira uma seleção de fábulas cinematográficas e suas lições

O Rei Leão (1994)
ENREDO: Mufasa, o Rei Leão, apresenta ao reino o herdeiro do trono, Simba. O recém-nascido recebe a bênção do sábio babuíno Rafiki, mas, ao crescer, é envolvido nas artimanhas de seu tio Scar, que planeja livrar-se do sobrinho e herdar o trono.
LIÇÕES: Honestidade, coragem para enfrentar o desconhecido, escolher bem em quem confiar, lidar com os problemas de maneira mais leve, acreditar em si mesmo.
Vida de inseto  (1998)
ENREDO: Todo ano, os gananciosos gafanhotos exigem uma parte da colheita das formigas. Mas, quando algo dá errado e a colheita é destruída, os gafanhotos ameaçam atacar e as formigas são forçadas a pedir ajuda a outros insetos.
LIÇÕES: É possível exercer liderança e ter satisfação no trabalho. Contudo, os líderes devem ser reconhecidos naturalmente, e não impostos. As atividades se tornam mais fáceis se feitas em grupo, entrosadas.
Formiguinhaz (1998)
ENREDO: A formiguinha Z é é apenas um operário que sonha conquistar da princesa Bala. Para isso, convence seu amigo soldado a trocar de lugar com ele, o que faz com que tenha que enfrentar o General Mandíbula, que planeja atacar o formigueiro.
LIÇÕES: Decisões tomadas deliberadamente pelos chefes, sem diálogo com funcionários, tendem ao fracasso. Se alguém decide desviar do planejamento por conta própria, é capaz de prejudicar a todos.
A fuga das galinhas (2000)
ENREDO: Em um galinheiro onde a maior parte das aves vive uma vida limitada a produzir ovos e terminar na panela, o galo Rocky chega e se apaixona pela galinha Ginger, que sonha com uma vida melhor. Juntos, arquitetam fugir de lá.
LIÇÃO: Para se tornar um líder, é preciso paciência e flexibilidade para lidar com os contratempos. A clareza na comunicação interpessoal é uma virtude importante para a conquista de resultados.
A era do gelo  (2001)
ENREDO: O mamute Manny, o tigre Diego e a preguiça Sid são amigos em uma época muito distante dos dias atuais e vivem  em meio a muito gelo. Um dia, encontram um menino esquimó sozinho, e decidem ajudá-lo a achar sua família.
LIÇÕES: Amizade, gratidão, compaixão. Nos demais filmes da saga, ficam mais outras lições a respeito do trabalho em equipe e até das consequências desastrosas do aquecimento global.
Procurando Nemo  (2003)
ENREDO: Marlin perdeu sua esposa e toda a ninhada. Agora, cria o único filho com todo o cuidado do mundo. Mesmo assim, Nemo é capturado. Agora, o pai enfrenta busca incansável pelo mar aberto, na esperança de encontrar o filho.
LIÇÕES: Tolerância diante das deficiências alheias. Não ter medo de viver a vida, sob pena de transmitir insegurança para os filhos. Ser obstinado e não desistir diante dos muitos obstáculos pela frente.
Irmão urso (2003)
ENREDO: Em busca de vingança por seu irmão ter sido morto por um urso, um índio é amaldiçoado e transformado em urso. Ele começa a ver a realidade sob a ótica dos animais, mas se vê em apuros quando começa a ser caçado.
LIÇÕES: Importância da fraternidade, do autoconhecimento e do perdão. Não desejar ou causar mal ao próximo, mesmo que este tenha lhe causado algum infortúnio.
O espanta tubarões  (2004)
ENREDO: Depois de ser perseguido pelo filho do tubarão-chefe, Oscar presencia sua morte e resolve assumir a autoria do “assassinato”. Tudo se complica quando o peixinho é designado a repetir a façanha, eliminando outros tubarões.
LIÇÕES: Valorização de quem nutre preocupações conosco. Cautela com o oportunismo. Possibilidade de preconceito na própria família. E “mentira tem perna curta”.

Nem que a vaca tussa  (2004)
ENREDO: A fazenda Caminho do Paraíso está em pânico, pois uma ação de despejo ameaça acabar com o local. Temendo ir para o matadouro, os animais decidem ajudar a dona a conseguir a quantia necessária para pagar a hipoteca.
LIÇÕES: Lealdade aos companheiros de jornada, persistência nos compromissos assumidos e importância do esforço coletivo em prol de uma causa benéfica para a comunidade.

Deu zebra  (2005)
ENREDO: Stripes é uma zebra abandonada ainda filhote pelos pais, que cresce acreditando ser um cavalo de corrida. Com a ajuda de seus amigos animais e da adolescente Channing Walsh, Stripes tenta fazer com que seu sonho se torne realidade.
LIÇÕES: É necessário esforço, garra e persistência para superar barreiras. Aceitar as diferenças entre os indivíduos e combater o preconceito são essenciais para uma convivência harmônica.
Madagascar  (2005)
ENREDO: Um leão, uma zebra, uma girafa e um hipopótamo sempre passaram a vida em cativeiro. Um deles decide fugir e explorar o mundo, e os amigos saem à sua procura. Acabam na ilha de Madagascar, onde precisam sobreviver na selva.
LIÇÕES: Em situações adversas, ou mesmo diante das pequenas mudanças do cotidiano, é necessário ser flexível para se adaptar à nova realidade e conviver com as diferenças entre os indivíduos.
Ratatouille (2007)
ENREDO: Remy é um rato que sonha se tornar um grande chef, embora a família seja contra e ele seja sempre expulso das cozinhas. Após conhecer um atrapalhado ajudante de cozinha, Remy passa a ajudar o amigo a cozinhar.
LIÇÕES: Superação pessoal e perseverança para colocar em prática os sonhos, em especial aqueles ligados às atividades profissionais. Não se deixar abalar diante de fracassos iniciais.
Kung-Fu Panda  (2008)
ENREDO: Po é um urso panda desajeitado. Um dia, é surpreendido ao ser escolhido para cumprir uma profecia, o que faz com que treine ao lado de seus ídolos do kung fu. Quando o leopardo retorna, cabe a Po defender o vale.
LIÇÕES: Não julgar os outros e as situações à primeira vista ou pela aparência. Cultivar o hábito da disciplina e treinar repetidamente são essenciais para o progresso.
Bolt – Supercão  (2009)
ENREDO: Bolt é um cachorro que estrela uma série de TV, na qual possui superpoderes. Mas ele não sabe que o mundo que o cerca é falso, e passa a acreditar que realmente possui dons especiais. Na vida real, ele aprende a ser um cão normal.
LIÇÃO: Chama atenção para as armadilhas da competitividade exacerbada, das ilusões a respeito de si mesmo, e para a relevância das parcerias para alcançar as metas.
As aventuras de Peabody & Sherman  (2014)
ENREDO: O cão mais inteligente do mundo ganha o prêmio Nobel e resolve adotar um bebê humano que encontrou abandonado. O animal constrói uma máquina do tempo para mostrar ao menino vários fatos históricos.
LIÇÕES: Mostra a importância de aceitar os indivíduos como eles são e da oferta de condições mínimas para o desenvolvimento de uma criança. Combate a todas as formas de bullying.

 

http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2016/03/21/internas_viver,633976/cada-vez-mais-sofisticadas-fabulas-do-cinema-passam-licoes-e-miram-ta.shtml

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