Os moradores do Morro do Alemão que estarão na próxima novela das 9, Salve Jorge

É na favela que se passará grande parte da trama de Glória Perez, que estreia dia 22 de outubro

MARTHA MENDONÇA
AO VIVO Teleférico no Complexo  do Alemão, no Rio de Janeiro. Glória Perez decidiu ambientar uma novela no local depois de assistir à ocupação policial na TV  (Foto: Getty Images)

“Eu vendo empada/Na porta da sua casa/Eu tô aí/Até de madrugada.” A voz da vendedora de empadas Adriana Souza já é velha conhecida dos moradores do Complexo do Alemão. As paródias de funk e pagode inventadas pela ambulante ressoam pelas vielas do conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, conhecido em todo o Brasil depois da ocupação policial em novembro de 2010. As cenas de dezenas de bandidos fugindo por estradas barrentas, largando chinelos e um império de drogas para trás, foram veiculadas exaustivamente em cadeia nacional e repetidas pela imprensa mundial. Agora, o Alemão, símbolo da pacificação das favelas cariocas, sai das páginas policiais e entra no horário nobre da televisão. A partir de 22 de outubro, Adriana da Empadinha e sua voz serão personagens de Salve Jorge, a nova novela das 9 da TV Globo.
É na favela que se passará grande parte da história. A protagonista, Morena, vivida por Nanda Costa, é moradora do Alemão. Ela se apaixonará por um oficial da cavalaria, Theo (Rodrigo Lombardi), quando sua comunidade for ocupada pelo Exército. Os personagens do local se misturarão com gente de verdade, moradores da favela. Como Adriana, que solta a voz para vender seus quitutes. Como Renê Silva, o jovem que narrou a ocupação do morro pelas redes sociais. Como Bruno Itan, o fotógrafo que retrata o interior da comunidade. Ou Otávio César Santiago Júnior, conhecido como Livreiro do Alemão (seus retratos estão acima e nas próximas páginas). “Gente talentosa e honesta que ganhou visibilidade a partir da pacificação. Misturá-los a minha história é muito interessante”, diz Glória Perez, autora da novela.
O primeiro capítulo de Salve Jorge reconstituirá o momento da ocupação do Alemão, com cenas gravadas e reais. O registro, segundo Glória, é importante para sua história. Ao longo da novela, as cenas do Alemão se dividirão entre as gravadas na própria favela e aquelas feitas na cidade cenográfica de quase 2 quilômetros quadrados, construída na Central Globo de Produção, o Projac. Construídos em pouco mais de um mês, os cenários reproduzem com perfeição casas, vielas estreitas e lajes. Os personagens já gravaram lá. “Quando cheguei, fiquei chocado. É igual até para quem mora aqui”, diz o estudante Renê Silva, de 18 anos, nascido e criado no Alemão, editor-chefe do jornal Voz da Comunidade.
Mostrar a ocupação do Alemão numa novela das 9 – o programa de maior audiência do Brasil, com quase 50 milhões de telespectadores diários – traz de volta o momento mais simbólico do combate ao tráfico no Rio de Janeiro. Naquela manhã de quinta-feira, 25 de novembro, veículos militares blindados, entre eles modelos usados pelo Exército americano no Iraque, entraram pela primeira vez nas vielas de uma favela da cidade. Na verdade, o que se convencionou chamar de “Alemão” (o nome é inspirado num rico dono de terras polonês que viveu no local na década de 1920) envolve dois complexos: o Alemão e a Penha, com mais de 20 favelas, mais de 2 milhões de metros quadrados e uma população de mais de 400 mil habitantes, com renda per capitainferior a R$ 250 por mês. A entrada do Bope – batalhão tão cultuado pelo cinema nacional – no coração do Comando Vermelho, maior facção criminosa do Estado do Rio, criou um sentimento de ufanismo e esperança em toda a população. Moradores acenavam com toalhas e lençóis brancos. A fuga dos bandidos foi aplaudida em lares, bares e locais de trabalho. “Parecia um filme”, diz Glória. Ela acompanhava pela televisão e pelas redes sociais.
Não é a primeira vez que Glória mistura realidade e ficção em suas tramas. Em 1995, uma de suas primeiras novelas, Explode coração, tocava no tema das crianças desaparecidas e mostrava fotos reais. Ao longo do tempo em que ficou no ar, 64 delas foram localizadas. Em 2001, O clone debateu as drogas e gerou discussões no Congresso Nacional. Glória é também pioneira em retratar o subúrbio, bem antes de a classe C entrar na moda. Na novela Partido alto, de 1984, os personagens principais constituíram a família de um bicheiro do Encantado, bairro da Zona Norte do Rio. Salve Jorge representa um passo além. Desta vez, a realidade invadirá a trama de um jeito mais concreto, com gente de verdade aparecendo na ficção. Num mundo em que há uma multiplicação de reality shows e em que anônimos se transformam em celebridade, Salve Jorge tem tudo para fazer história.
Adriana da empadinha

Adriana da empadinha (Foto: Stéfano Martini/ÉPOCA)

Difícil saber se é mais gostoso comer as empadinhas de Adriana ou ouvi-la cantar. Isopor no ombro, ela invade as vielas do Alemão com sua voz potente, entoando composições próprias ou paródias de músicas de sucesso. As crianças já sabem de cor. “Mãe, a Dona Empadinha chegou!”, dizem. Ela já foi empregada doméstica, mas cansou de trabalhar fora e de andar em transporte lotado. Depois que largou o último emprego, há cinco anos, aceitou o conselho de uma vizinha e começou a fazer empadas. “Saí no primeiro dia e vendi tudo, mais de 100. Voltei para casa e comecei a fazer mais. Nunca mais parei”, diz. Ela conta que vende, por dia, 250 empadinhas, cada uma a R$ 2. Começou cobrando R$ 0,50. Como sempre compravam duas ou três, aumentou o tamanho da empada e o preço. Hoje, está mais para empadão, nos sabores bacalhau, camarão, frango e queijo. Começa à tarde e, muitas vezes, só para à meia-noite. Recentemente, começou a fazer brigadeiros. Já são quase 300. Sobre a participação na novela, diz que ainda está trabalhando no “modo não estou acreditando”. Afirma que o marido, que trabalha como porteiro, não ficou com ciúme. Só avisou que “nada de beijo na boca nem aparecer pelada”. Adriana já gravou uma cena. “Só espero que meu cabelo fique bom na TV”, diz.
O Livreiro do Alemão

O Livreiro do Alemão (Foto: Stéfano Martini/ÉPOCA)

Pai pedreiro e mãe dona de casa, aos 9 anos o pequeno Otávio aprendeu a fuçar o lixão perto de onde morava. Via que ali, entre os objetos que pessoas não queriam mais, havia coisas que ele gostaria de ter. Brinquedos, uma ou outra roupa – até que um dia achou um livro:Don Gatón, um conto infantojuvenil espanhol traduzido para o português. Na mesma noite, com a luz de uma vela, leu toda a história. “Quando acabei, senti um prazer que nunca experimentara. Nem com o futebol, minha maior paixão”, diz. Passou a perguntar aos vizinhos quem tinha livros para crianças. Ninguém tinha. E ainda perguntavam se ele estava maluco. Mais velho, com 11 anos, passou a descer a favela para frequentar bibliotecas públicas da região. Devorava tudo o que podia. Adulto, criou o projeto “Ler é 10, Leia Favela”, para aproximar crianças e livros. Conta histórias e debate, estimulando a curiosidade. Graças à pacificação, no ano passado realizou um grande sonho: com recursos públicos, inaugurou a primeira biblioteca dos Complexos do Alemão e da Penha. Agora, as crianças não precisam mais procurar livros no lixo.
O criador do fotoclube

O criador  do fotoclube  (Foto: Stéfano Martini/ÉPOCA)

“É só isso que a gente é? Crime, pobreza, coisa ruim?” Era o que o menino Bruno Itan se perguntava depois que se mudou do Recife para o Rio de Janeiro, com a mãe e o padrasto, e foi viver no Complexo do Alemão. Naquele tempo, ele só pensava em ser piloto de avião ou jogador de futebol. Até que, na adolescência, conseguiu vaga num curso de fotografia oferecido na favela, organizado por uma ONG. Mais do que as técnicas, se interessou pela oportunidade de clicar a vida em sua vizinhança. Em 2010, durante a ocupação do morro, aventurou-se pelas ruas para registrar, de perto, a ação policial. Fotos suas foram publicadas pelos jornais do Rio. Eles também noticiaram as dificuldades que muitas vezes Bruno enfrentava, com a própria polícia, para fazer seu registro. No ano passado, ele criou o Foto Clube Alemão. Aos sábados, reúne jovens de várias comunidades para fotografar a favela. Nos últimos fins de semana, o grupo chegou a 70 pessoas. “Queremos mostrar a beleza e curiosidades daqui. Nossa vida real, que também é bela”, afirma. Em 2011, na inauguração do Teleférico do Alemão, expôs as fotos feitas durante o trabalho de construção. E se surpreendeu quando a presidente Dilma Rousseff pediu para conhecê-lo, durante a cerimônia.
O afago, além de orgulho, lhe rendeu um emprego. Hoje, ele é um dos fotógrafos oficiais do governo do Estado do Rio. “Meu primeiro emprego fixo e fazendo o que mais gosto. Bom demais!”
O embaixador da comunidade

O embaixador da comunidade (Foto: Stéfano Martini/ÉPOCA)

Antes da pacificação, o estudante Renê Silva já criara, impresso, o jornalzinho Voz da Comunidade, que circulava no Morro do Adeus, uma das favelas do Complexo do Alemão. Foi nos dias da ocupação que sua voz ganhou o Brasil e o mundo. Pelo Twitter, ele contou, em tempo real, tudo o que acontecera nos dias em que a polícia tomava a favela. Com boa informação, crítica social e ironia, ele foi o símbolo dos moradores que viviam oprimidos. Hoje, aos 18 anos, prestes a fazer vestibular para jornalismo, ele tem 37 mil seguidores, é consultor de programas para jovens na TV e dá palestras pelo país. Também foi a Londres, em julho, representar o Brasil no carregamento da tocha olímpica. Foi por intermédio de Renê que Glória Perez chegou a outros personagens reais para Salve Jorge. “A ideia é chamar mais gente e abastecer a novela toda de moradores daqui”, afirma. Por sugestão de Renê, os moradores do Alemão ganharam prioridade entre os figurantes da novela, na cidade cenográfica. “Será lindo todo mundo se vendo na TV. Tudo o que está acontecendo é muito importante para a autoestima da gente”, diz ele.

Matéria publicada na Revista Época :  www.epoca.globo.com

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