Projetos de resgate renovam o interesse pelo cinema da Boca do Lixo

Guilherme Solari
Do UOL, em São Paulo

Lembre alguns dos clássicos da Boca do Lixo10 fotos

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“São Paulo Sociedade Anônima” (Luís Sérgio Person, 1965) – Premiado filme com Walmor Chagas e Eva Wilma e um dos grandes clássicos do cinema nacional. O longa retrata a alienação e dificuldades de um cidadão mediano na São Paulo em plena industrialização após os anos 1950 Reprodução

A afirmação de que o Brasil é um “país sem memória” parece ter sido feita sob medida para o movimento que ficou conhecido como Boca do Lixo. Essa vertente do cinema marginal que se desenvolveu na São Paulo dos anos 1960 a 1980, na região da Luz e em particular nas ruas Vitória e do Triunfo, hoje uma das partes mais decadentes do centro paulistano, deixou uma forte marca na história da produção nacional, mas se distanciou do imaginário popular com o fim do polo cinematográfico.
“O polo da Boca do Lixo chegou a produzir, sozinho, de 120 a 130 filmes por ano”, lembra o cineasta Clery Cunha, diretor de filmes como “Joelma, 23º Andar” (1979), “O Outro Lado do Crime” (1978) e “Os Desclassificados” (1972). Assim como muitos diretores brasileiros, ele afirma que o marco final da Boca do Lixo foi a extinção da lei de obrigatoriedade do cinema nacional, que determinava que as salas de cinema exibissem uma quantidade mínima de filmes brasileiros. No início dos anos 1990, essa lei foi extinta pelo então presidente Fernando Collor.
“Cinema é uma indústria. Quando o Collor acabou com tudo, nós ficamos uns 15 anos no ostracismo. Os americanos, que são os pais da matéria, massacraram o nosso cinema”, conta Clery. “Devemos reverenciá-los pela qualidade, mas nesse lado de mercado foi muito triste. Tinha uma amplitude de empregos muito grande do pessoal de teatro na rua do Triunfo e na rua Vitória, em todos os prédios ali, com diversas produtoras e distribuidoras. Hoje você passa lá, e bate a nostalgia. Eu nem vou. Você não tem mais cinemão de 1.300 lugares com telas gigantescas.”

Pontos marcantes da Rua do Triunfo

Conheça a região conhecida como Boca do Lixo nos anos 60.

A Boca do Lixo teve uma produção ampla de gêneros como ação, suspense, comédia, horror, além das famosas pornochanchadas. Eram filmes apelativos, de abordagem muitas vezes mórbida e sensacionalista, que buscavam compensar falta de orçamento com excesso de criatividade. Dessa forma, a Boca do Lixo acabou se tornando a vanguarda experimental na história do cinema brasileiro e atraiu diretores como Francisco Cavalcanti, que morreu no dia 1º de outubro, Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Walter Hugo Khouri, Júlio Bressane e José Mojica Marins, o Zé do Caixão.
Porém, a tal “falta de memória” que prejudica o cinema nacional é hoje combatida por diversas frentes. O UOL conversou com personagens que buscam, de diferentes formas, tanto manter a memória da Boca do Lixo viva como reinventá-la para a atual realidade brasileira.
 

Maria do Carmo/Folhapress

O diretor Clery Cunha: cineclube criado como espaço de troca entre fãs e cineastas

 
“Hoje você passa na rua do Triunfo, e bate a nostalgia. Eu nem vou”
Clery Cunha evita ir até a rua do Triunfo, antes coração da Boca do Lixo e hoje de uma das áreas mais degradadas do centro de São Paulo. Ele prefere manter viva a memória da Boca de outra maneira: por meio dos próprios filmes. O cineasta é responsável pelo Cineclube Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões de São Paulo), que tem sessões às segundas-feiras, em uma sala de cinema improvisada no andar superior do restaurante Frango com Tudo, na rua Canuto do Val, 115, Santa Cecília. “A iniciativa começou há sete anos comigo e com o diretor Mário Vaz Filho”, conta Cunha. “A primeira projeção foi de ‘O Palhaço’, do Selton Mello, e, com o tempo, fomos colocando filmes de todas as épocas e curtas na programação”. Nesta segunda-feira (13) estará em cartaz “Chumbo Grosso”, longa que ele lançou em 1977.
Antes de virar cineasta, Cunha trabalhou na extinta TV Tupi como “caboman” (auxiliar que carrega os cabos para o cinegrafista), começando aos 13 anos de idade. “Hoje em dia você só tem um tripé e já se vira”, conta. “Trabalhei como iluminador, assistente de iluminação, assistente de estúdio, em profissões que não mais existem na hierarquia do cinema. Eu queria ser câmera, mas naquela época as câmeras eram muito pesadas, e eu não era muito forte.”
Conversar com Clery Cunha, que fez 20 longas ao longo de sua carreira, não deixa de ser uma maneira de ouvir a história da própria Boca do Lixo. Em certo momento, ele lembra como era comum ver carroças carregando rolos de filme entre uma ou outra produtora. Lembra das diferenças entre as “fitas sérias” do Rio de Janeiro e as “chanchadas” paulistanas. Lembra como “A Moreninha” (1970) foi “um musical que extrapolou fronteiras”. De encontrar uma cópia rara de “Seara Vermelha” (1964) com um colecionador particular. “‘Simão, o Caolho’ é outra relíquia, assim como ‘Dioguinho’, o primeiro filme colorido brasileiro. A minha ideia com o cineclube foi tentar preservar isso”, diz ele citando, respectivamente, produções de 1952 e 1957.
 

Reprodução

O jornalista Gil Gomes interpreta ele mesmo em “Do Outro Lado do Crime”, de Clery Cunha

 
O cineclube organizado por Cunha, que já contou com projeções de “Seara Vermelha”, “A Morte Comanda o Cangaço” (1961) e “A Moreninha”, tem uma atmosfera de encontro de amigos, com diretores, técnicos e atores que fizeram parte da Boca do Lixo se confraternizando enquanto tomam cerveja e assistem aos filmes. Ao final, acontecem debates surpreendentemente acalorados entre os conhecidos de longa data sobre fotografia e qualidade do som. As primeiras projeções foram na sede do Sated, na avenida São João, antes de se mudarem. “Tínhamos problemas com o barulho. Você sabe, o pessoal de cinema às vezes fica bem empolgado”, conta Cunha.
 

Divulgação/Pipol

Rafael Spaca, pesquisador e coordenador do movimento “Rua do Triunfo, A Volta”

 
“Distanciamento histórico está trazendo novo interesse sobre a Boca do Lixo”
Pesquisador da Boca do Lixo, em especial sobre as atrizes do período, Rafael Spaca percebeu uma nova onda de interesse sobre o movimento há três anos, quando começou a receber convites de estudantes para falar sobre o assunto. “Acho que o distanciamento histórico permite às pessoas olharem com maior reflexão sobre o que aconteceu”, diz. “A Boca era muito perseguida, vista como produtora de filmes sem preocupação estética e com o público, muito em razão da imprensa e dos cineastas do Rio.”
Segundo ele, nos últimos anos novos fãs começaram lançar um olhar mais isento para a Boca do Lixo. “Essa nova geração percebe a importância que a Boca teve para a nossa cultura, como a Boca sustentou o nosso cinema. Sem ela, o nosso cinema não existiria. Ela lançou diversos cineastas, produtores, atores e atrizes como Vanessa Alves, Vera Fisher, Cristiane Torloni, muita gente. Foi o aparelho de respiração do cinema. Sem a propaganda negativa e sem o calor da época, a Boca é vista de outra forma.”
Recentemente, Spaca acabou se unindo à trupe d’O Pessoal do Faroeste, que pesquisa a cultura paulistana, e à atriz Noelle Pinne para criar o movimento “Rua do Triunfo, A Volta”, que busca renovar aquela região do centro paulistano. “Buscamos o tombamento da rua como patrimônio histórico. Foi uma das ruas mais importantes do cinema mundial, desde 1920 sediou diversas distribuidoras internacionais e faz parte da memoria afetiva de milhares de brasileiros. Hoje você passa pela rua e não existe nenhuma referência ao cinema nacional.”
Abaixo, imagens de “Magnífica 70”, nova série da HBO sobre um censor acaba se tornando diretor de pornochanchadas

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Magnífica 704 fotos

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Adriano Garib vive Manolo, um ex-caminhoreiro que se torna produtor de filmes em “Magnífica 70”. Já Simone Spoladore é Vera/Dora, uma bandida que se infiltra na Boca para roubar dinheiro, mas acaba se apaixonando pelo universo do cinema. Vera adota o nome de Dora e começa a atuar nos filmes produzidos pela Magnífica. Ao UOL, Simone contou que se inspirou na atriz Helena Ignez. “Helena tinha uma liberdade grande nos filmes, ela usava a nudez como empoderamento do feminino, não se portava como uma mulher objeto, ela se posicionava, não era só um símbolo sexual” Divulgação

 

Divulgação/Priscila Machado

Fachada do antigo Hotel Esplanada na Rua do Triunfo. Movimento quer criar no local o Centro de Memória e Pesquisa da Boca do Lixo

 
“Quanto ao espaço da rua do Triunfo, a decadência acompanhou a do próprio centro. As pessoas deixaram o centro com a chegada mais forte das drogas, e a Boca sofreu com isso. A rua do Triunfo é uma das artérias da cracolândia. O primeiro objetivo do grupo é criar um centro de memória e pesquisa da Boca do Lixo no antigo Hotel Esplanada”, conta Spaca, dizendo que a iniciativa já recebeu da atriz Rossana Ghessa, uma das “musas da Boca”, doações de maquinário do cinema da época, como projetores, luzes e câmeras, para ajudar a compor a parte museológica.
“Pretendemos dialogar com o proprietário [do Hotel Esplanada, hoje abandonado] e a prefeitura para construir o centro de memória no local. Também queremos que os muitos sobrados abandonados da região sejam ocupados por produtoras de cinema e teatro, além de ter uma sala de cinema para clássicos da Boca”, diz.
 

Divulgação

Alexandre Cunha, Gerente de Programação e Aquisição do Canal Brasil

 
“Filmes da Boca do Lixo são responsáveis por 50% das 20 melhores audiências do Canal Brasil”
Criado há 16 anos, o Canal Brasil acabou se tornando um importante veículo tanto de difusão dos filmes da Boca do Lixo como de fonte de renda para os diretores. Pouco antes de morrer, durante uma sessão do Cineclube Sated, o diretor Francisco Cavalcanti até mesmo chegou a dizer que conseguia pagar as contas em grande parte pelo que ganhava do Canal Brasil. “Ouvi muito essa frase, não somente do Francisco Cavalcanti, mas de muitos outros cineastas”, disse ao UOL Alexandre Cunha, gerente de programação e aquisição do Canal Brasil.
Alexandre conta que o canal costuma normalmente estabelecer períodos de três anos, com 32 exibições do filme, com preços negociados caso a caso. Os filmes da Boca representam hoje uma fatia expressiva da audiência do canal. “Em todas as nossas medições, no recorte das 20 maiores audiência de cada mês, os filmes da Boca invariavelmente aparecem com pelo menos 50% de representação.”
Segundo o gerente, o canal costuma ser procurado por diretores, mas a emissora também promove um trabalho de busca de filmes que ainda estão em película para fazer a passagem para a mídia digital e para a televisão. “Dessa forma foram ‘resgatados’ mais de 500 títulos dos anos de 1960, 1970 e 1980 que permaneciam inéditos na TV.”
 

Reprodução

O autointitulado “crítico do rala e rola” do cinema nacional Tonhão Borracha. Programa “Como Era Gostoso” do Canal Brasil traz clássicos do erotismo da Boca do Lixo

 
“Já passaram por aqui mais de 3.000 títulos entre longas, médias e curtas-metragens, de todos os gêneros e formatos e de todos os ciclos. A Boca do Lixo, em particular, está muito bem representada na faixa ‘Como Era Gostoso’, que vai ao ar sempre às quartas e quintas, à 0h15. Acreditamos que a própria história do Canal Brasil e a sua permanência nos lares dos assinantes cumprem na essência esse papel de manter a memória viva do cinema nacional”, diz Alexandre.
Entre as principais raridades encontradas pelo canal, Alexandre cita “Oh! Rebuceteio” (Cláudio Cunha), “Coisas Eróticas” (Raffaele Rossi/Laente Calicchio), “Assim Era a Pornochanchada” (Victor Di Mello/Cláudio MacDowell), “A Ilha dos Prazeres Proibidos” (Carlos Reichenbach), “A Noite das Taras” (David Cardoso, Ody Fraga e John Doo), “Mulher Objeto” (Silvio de Abreu) e “Ivone, a Rainha do Pecado” (Francisco Cavalcanti).
 

Divulgação

Paulo Faria, diretor do Pessoal do Faroeste: busca de incluir moradores locais na renovação da Boca

 
“A Boca não acabou porque estamos aqui até hoje”
Quem passeia hoje pelas suas do bairro Santa Ifigênia encontra muitas lojas de eletrônicos, de aparelhos de som ou prédios abandonados, e praticamente vestígio algum do passado cinematográfico da região. Mas pelo menos um enclave de Boca do Lixo sobrevive na região: o grupo Pessoal do Faroeste, que, após diversos documentários e produções teatrais, está concluindo sua primeira ficção: “Luz Negra”, filme no qual a atriz Mel Lisboa interpreta Vanda Marquetti, diva do teatro e cinema paulistano em 1937.
O grupo, que existe há 14 anos, fundou sua “sede luz” há três na rua do Triunfo e passou a se dedicar ao estudo histórico da região. “Tentamos criar um movimento da volta, como forma de retomar a nossa própria história”, conta Paulo Faria, diretor do grupo. Morador da região, Paulo dedica seu olhar não apenas para o passado, mas também ao presente. Como exemplo, cita uma já tradicional reunião de sambistas que acontece no local. “Quando chegamos, queríamos entender por que havia essa roda de samba, por exemplo.”
 

Bob Souza/Divulgação

Mel Lisboa em imagem de “Luz Negra”, peça sobre musa da Boca do Lixo também virou filme

 
O trabalho do Pessoal do Faroeste faz paralelos entre o passado e presente, mostrando como a região já se tornou destino de grupos marginais e esquecidos pelo Estado –como a expulsão de prostitutas do bairro Bom Retiro em dezembro de 1953, pelo então prefeito Jânio Quadros, que levou as moças a se instalarem na região.
“É uma área muito marginal. Cinquenta anos depois, vemos ações similares por conta do governo com a expulsão da cracolândia, que leva usuários a se refugiarem no local. Contextualizando o passado da Boca, acabamos discutindo questões do presente”, diz Paulo, que defende que a solução não é arrastar essas populações de um lado ao outro da cidade, mas sim buscar formas de incluí-las.
“Montamos um palco na Virada Cultural na região e estamos fazendo um filme com os usuários. Temos olhado e buscado formas de preservar essa imagem marginal que o local já tem. Temos oficinas de vídeos, direção e cinema. Tentamos despertar uma vocação, mostrar a uma costureira como costurar para teatro, um eletricista a fazer luz para o palco”, diz.
Paulo conta que as peças do grupo também ajudam a apresentar a região a pessoas que têm receio de ir até lá. “As pessoas chegam com medo do lugar. A própria polícia fala: ‘Se fosse você, eu não iria para lá’. O público que nunca vem para cá volta conhecendo o lugar e se relaciona de outra forma com esse espaço. A Boca não acabou porque estamos aqui até hoje.”

http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/10/13/projetos-de-resgate-renovam-o-interesse-pelo-cinema-da-boca-do-lixo.htm

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