Ursula Oppens faz recital sobre a ditadura

Agência Estado
Ursula Oppens é uma pianista com uma missão. Ao longo de toda sua carreira, trabalhou ao lado de compositores de diferentes gerações, como Witold Lutoslawski, Elliot Carter e György Ligeti, com um só objetivo: fazer da música clássica algo “vivo e pulsante”. É algo, ela brinca, que “aconteceu por acaso”.Mas que torna marcante sua primeira visita ao Brasil, onde ela faz recital neste domingo, 30, na Sala São Paulo – ainda mais porque, ao unir obras do brasileiro Claudio Santoro e do americano Frederic Rzewski, o programa investiga as relações entre música e política.Não se trata de acaso. O recital é iniciativa conjunta da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo com o Instituto Vladimir Herzog e acontece na véspera dos 50 anos do Golpe de 64. E os autores e obras escolhidos refletem este contexto.
Amazonense, Santoro (1919-1989) flertou com diversas escolas de composição, mas o pensamento de esquerda foi fundamental em toda a sua trajetória – e o levou ao exílio durante a ditadura, quando escreveu algumas das peças que serão tocadas por Ursula. Nascido em Massachusetts, em 1938, Rzewski não experimentou a vida sob regimes totalitários – mas fez de temas sociais e políticos o substrato de suas principais criações, caso das 36 Variações sobre ‘O Povo Unido Jamais Será Vencido!’, escritas com base em um tema do compositor e ativista chileno Sergio Ortega.
“A combinação entre música e política assume diferentes formas ao longo da história”, diz Ursula em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S.Paulo. “Afinal, Schumann já inseriu, lá atrás, a Marselhesa em uma peça, lembra-se? Mas há compositores em que a política está na forma, na riqueza de camadas e significados, no modo como ele leva à reflexão e faz pensar”, diz. “Ou então, o que dizer da orquestra de músicos judeus e palestinos, criada por Edward W. Said e Daniel Barenboim, que, a partir do ato de fazer música, estabelece afirmação política contundente? É algo constante.” A música é capaz de mudar a história? “Não sei, mas com certeza ela influencia o ser humano e sua relação com o mundo. Olhe à sua volta. Estão todos com fones de ouvido. Eu gostaria que eventualmente eles os tirassem e conversassem, seria bom. Mas o fato é que essas pessoas todas estão ouvindo música e isso é prova da importância que ela tem em nossa vida, em nossa sociedade.”
No caso de Rzewski, há, de um lado, a canção tema de Ortega, O Povo Unido Jamais Será Vencido, “que até hoje é ouvida em manifestações”, diz a pianista. Mas há também o fato de que o compositor utiliza diversos estilos e tendências estéticas, da música tonal à atonal, passando pelo minimalismo e outras correntes, para narrar, ainda que de forma simbólica, uma trajetória marcada por lutas, incertezas, perdas, vitórias e desafios. Em outras palavras, a forma, em uma obra como essa, diz tanto quanto o conteúdo – e ambos estão falando da grandeza da unidade popular, como aponta o professor Christian Wolff, da Universidade Harvard, em texto publicado no programa do concerto de domingo.
Identidade
Ursula já gravou a obra de Rzewski, compositor de quem se tornou uma das principais divulgadoras. Mas, durante a entrevista, sua surpresa é com as obras de Claudio Santoro. Ela não o conhecia – ou ao menos não sabia dele mais do que o fato de que um dia existira. “Sua obra é extraordinária, muito interessante na diversidade que carrega. Algumas peças são atonais, outras evocam a música brasileira da tradição, mas nunca de maneira óbvia. E, em cada ambiente musical, ele atinge a expressão máxima daquilo que se propõe a fazer”, diz.
Para ela, é especialmente marcante a personalidade do compositor. “Certas peças são muito curtas. E, mesmo nelas, há uma identidade muito forte. Poucas vezes vi um compositor capaz de, em tão pouco tempo, demonstrar tanta personalidade. Um autor como Bartók, tão afeito a miniaturas”, comenta ainda a pianista.
Se música é política – e política subentende diálogo, chama atenção da pianista a falta de conversa, ao longo do século 20, entre Estados Unidos e América Latina. “Não é uma constatação nova, a de que nossos compositores e intérpretes não conversaram muito entre si, mas ainda não conseguiencontrar um motivo concreto e definitivo para isso”, ela diz. Um palpite? “Talvez o fato de que, na América Latina, os artistas tenham sempre procurado a Europa como interlocutora.”
É uma informação a confirmar a constatação de Ursula – mas por que América do Sul e EUA olharam para a Europa e não entre si? Ela devolve a questão. Talvez seja porque a produção musical do colonizado sempre buscou a aprovação do colonizador? Como um filho a provar para o pai que pode ser como ele – ainda que possa optar, eventualmente, por outros caminhos? O escritor cubano Alejo Carpentier, nos anos 60, já falava dessa busca de diálogo entre a tradição do Ocidente, encarnada no Velho Continente, e a nova músicas nascida nas Américas. E também anotou, em Os Passos Perdidos, que “a Grande História alimenta-se de fábulas”. “Eles perderam o sentido do fabuloso. Eles chamam fabuloso tudo que é remoto, irracional, situado no passado (…). Não compreendem que o fabuloso se situa no futuro.”
“Um dos aspectos que me intrigam especialmente é o fato de que tanto os músicos americanos como os sul-americanos viveram, ao longo do século 20, experiências semelhantes, seja na descoberta de uma voz própria, seja na relação com a Europa. Afinal, também éramos uma colônia”, ressalta Ursula.
Tempos
Nascida em Nova York, a pianista completou 70 anos em fevereiro. Ela foi introduzida ao piano pela mãe, Edith Oppens, pedagoga de renome. Formou-se na Julliard School of Music – e, na universidade, estudou economia e literatura inglesa. Em que momento se voltou para a música contemporânea? Foi um processo consciente? Não, simplesmente aconteceu. “Eu adoro tocar Beethoven também, não tenho nada contra ter um repertório amplo. Mas acredito que, desde cedo, uma coisa que me passava pela cabeça era: se a música clássica existe apenas como manifestação do passado, nosso trabalho como intérprete é apenas de restauração e preservação. Não gosto dessa noção. De certa forma, para que exista o passado, é preciso investir no presente e acreditar no futuro.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo./http://www.dgabc.com.br/

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui